ainda raízes

 


Depois de tanto falar de raízes, desterros, transplantes, o tema ficou aparecendo e reaparecendo - ou eu que fui prestando atenção ou lembrando, possivelmente uma combinação entre essas coisas todas.

Uma das coisas de que me lembrei foi do texto do Georges Didi-Huberman sobre o Glauber Rocha, publicado pela n-1 naquela série Pandemia Crítica. Nele, Didi-Huberman conta sobre sua experiência de caminhar no Parque Lage, no Rio de Janeiro e sobre "o mundo radicular da floresta" como imagem de pensamento que lhe permite considerar tanto sobre os sentidos da radicalidade quanto da genealogia. Diz ele: "Não vou às raízes (do passado), portanto; são as raízes que surgem sob os meus passos para modificar radicalmente o meu caminho (para o futuro)".

Contra o modelo genealógico da origem una (a raiz), ligada a um solo e progressivamente orientada para cima (e como não pensar nas ilustrações das teorias eugenistas?!), Didi-Huberman lembra que as raízes são plurais: se pudéssemos puxar as raízes de uma árvore, jamais chegaríamos a um centro, à raiz; teríamos em mãos um emaranhado fragmentado, impossível de recompor e deixando incontáveis rastros sobre a terra. (Sem nem começar a falar da relação das raízes com o solo: bactérias, fungos, minerais... Um tanto de coisas que são e não são raízes).

Caminhando, experimentando esse corpo transplantado, me percebo o tempo todo alternando o nível do olhar. Meu celular tem fotos de céu e árvores, mas também de detalhes próximos ao chão - pássaros, bichos, fragmentos de raiz (alguns de árvores já cortadas, outros de raízes que se estenderam para longe do tronco). Entre o espanto e a curiosidade, o corpo parece se dispor à presença.

Trago o Didi-Huberman de novo: "O que me ensina o meu passeiozinho por troncos, trepadeiras, folhas e raízes do Parque Lage é, pelo menos, que é preciso ver as coisas por dois pontos de vista, ao mesmo tempo: o ponto de vista daquilo que prolonga e persiste, quando as raízes migram simultaneamente para o lado da terra (radículas) e para o lado do céu (ramas), e o ponto de vista daquilo que corta e bifurca, com o risco de se perder num movimento centrífugo, como se a árvore quisesse fugir do seu próprio local de fundação".

Conexão e corte, céu e terra, interrupção e multiplicação: as raízes ensinam a multiplicidade de modos com que se constitui não apenas o indivíduo-árvore, mas também toda uma ecologia de comunicação, trocas, imbricamentos que resultam no enraizamento. Uma árvore, uma planta, é sempre muito mais do que aquilo que vemos.




Semana passada lia um texto da Isabelle Stengers (Reativar o animismo) e, de novo, a questão das raízes, agora para imaginar outros modos de pensar as relações entre as ciências, os saberes. Ela começa, na verdade, falando sobre pontes - "Algumas pessoas adoram dividir e classificar, enquanto outras fazem pontes – tecem relações que transformam uma divisão em um contraste ativo, com poder de afetar, de produzir pensamento e sentimento" (p.2).

Mas conforme o texto caminha, ela chega também à imagem do rizoma: "Pode-se talvez objetar caso se entenda que o rizoma é uma figura de anarquia. Sim – mas de uma anarquia ecológica, porque ainda que as conexões possam ser produzidas entre quaisquer partes de um rizoma, elas também devem ser produzidas. Elas são acontecimentos, ligações – como a simbiose. Elas são aquilo que é e permanecerá heterogêneo" (p.5, grifos meus).

De novo, aqui raiz não tem nada a ver com a ancoragem no solo ou a origem; como imagem de pensamento, o rizoma é o efeito dos acontecimentos - trabalho e história - que permite que se conciliem as persistências e os cortes. Nem identidade, nem progresso. Nem pura abertura, nem acaso. Pontes: essas estruturas lacunares que, ainda assim, conectam.



No sábado, estivemos em uma reserva próxima a Canberra, que foi afetada pelos incêndios de 20 anos atrás. As marcas já não são tão visíveis, mas de vez em quando pontuam a paisagem. Há árvores que voltaram a crescer por dentro ou pelas bordas das feridas, mesmo que mantendo essas cicatrizes. As marcas do desastre também estão no que falta: os coalas, por exemplo, que foram os mais atingidos pelo fogo. A floresta não "se regenera", como se simplesmente retornasse a uma condição anterior - a vida volta a acontecer, as raízes sustentam o trabalho do tempo, mas já é outra floresta. (Se quisesse continuar com Stengers, ainda que mudando o contexto de sua discussão, diria que a floresta se reativa: "Reativar significa recuperar e, neste caso, recuperar a capacidade de honrar a experiência, toda experiência que nos importa, não como “nossa”, mas sim como experiência que nos “anima”, que nos faz testemunhar o que não somos nós", p.11).

Conversamos sobre os incêndios, ainda frescos na lembrança. A urgência, a emergência; as fotos de outro incêndio, mais recente, no celular. As memórias compartilhadas com as árvores - efeito de pontes, para além da divisão das espécies? Ouço com atenção a história delas e dos humanos que me acompanham.

E porque penso nas catástrofes e testemunhos, me lembro de mais uma ocorrência de raiz (a última desta postagem): a gravação linda que a Susana Baca fez da canção da Natalia Lafourcade, "Hasta la raíz", como modo de lembrar os desaparecidos no Peru. Na versão de Susana Baca, a raiz é um espaço interior onde carregar as lembranças e o nome do desaparecido, sustentando o compromisso de não esquecer.

(E essa última frase me faz querer anotar que hoje conheci alguém cujos gatos se chamam Antígona e Bartleby. Fim da postagem rizomática).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

irmã, despedida, florescer

pele, cicatrizes

línguas, linguagens, silêncios