sulcos, funduras, cicatrizes
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como tantas outras, as notas iniciais deste texto estão em uma folha já toda amassada, há dois anos rodando entre outros papéis, tendo atravessado dois oceanos para chegar até o presente. são anteriores à morte de minha irmã, o que as tornam mais difíceis de retomar - coincidência? premonição?
mas elas nada tinham a ver com a morte e sim com a linguagem. elas se conectavam ao esforço de nomear uma dificuldade que já se anunciava: tantas incertezas sobre o mundo e o presente que as palavras, também elas, precisando se apoiar em seus caminhos até a boca, até o papel. as palavras deslizando lentas, mancando um pouco, sempre temerosas em falsear o passo e iniciar uma queda livre. conversas e escritas todas coalhadas de silêncios e hesitações. caio fernando abreu: "houve um tempo em que eu tive um rio [de palavras] por dentro, mas acabou secando". a comunicação, agora, toda de aspereza e tropeços, no chão seco do rio perdido - pedra e poeira.
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a ausência de minha irmã tornou mais difícil caminhar por esse veio seco. é como se algo tivesse se calado, sem vontade alguma de retomar o movimento. inaugurou-se um silêncio tão denso, tão alto, tão amplo que daria para ficar ali por muito tempo. no interior desse silêncio, o ruído do mundo que continua está abafado; ali, ainda é o momento-quando do não saber e, por isso mesmo, um tempo-espaço em que ela está, por alguns instantes, ainda viva.
quebrar esse silêncio é retomar o movimento é atender o telefone é passar a saber é contar ao filho é contar para alguns amigos é lidar com as lágrimas que correm quase a todo o tempo é torcer para que formem fluxo e recomponham o rio é suspirar bem fundo e seguir nessas margens estreitas do rio perdido é evitar ultrapassar o curso marcado para não adentrar regiões da língua em que se encontra "uma irmã". quebrar esse silêncio é, ao mesmo tempo, colocar-se em modo de fuga e inaugurar o desconhecido - o desconhecido do mundo sem ela, do mundo com a ausência dela.
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hoje testemunhei o momento-quando uma filha soube que seu pai partiu, de repente. instantes antes era o ordinário da vida: o cansaço, os planos para a semana. e então a orfandade inaugurada. lembro que tenho em meu aplicativo de conversas o áudio de outro momento-quando uma irmã soube da morte de seu irmão, também repentina. nunca mais pude ouvir a mensagem, mas sigo ouvindo a notícia sendo comunicada a mim - como pode tanta dor caber em dados criptografados de ponta a ponta? como pode se manter, traduzida e retraduzida no que quer que seja que viabiliza a transmissão veloz do som e do texto?
anoto: testemunhar o momento-quando da notícia é ser afetado pelas ondas do que então violentamente se despedaça. mais do que isso: é ser também cortado pelos estilhaços vivos do que, ao quebrar, se espalha com mais ou menos violência. é ver o tempo ganhar uma cicatriz indelével, feita de agora.
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em seu artigo sobre a sociedade de alvos direcionados, grégoire chamayou trata da distinção arqueológica entre corpos fósseis e traços fósseis. a respeito destes últimos, cita alcide d'orbigny, que os define como "[...] vestígios fósseis deixados pelo corpo, vivendo em sedimentos não consolidados e que remetem nem tanto às partes sólidas mas antes a seus hábitos vitais e fisiológicos. Referimo-nos a pegadas de animais, a sulcos, a caneluras, a excrescências deixadas por órgãos de animais que andam ou nadam".
sinto, com dificuldade de colocar em palavras que aproximem esse sentir de pensar: o luto impele a mapear os traços fósseis que quem partiu deixou em nós. seus hábitos vitais - em nossos gestos, expressões, gostos. cartografar em nós os vestígios de como nos compomos junto a outros - para que sigamos em composição.
os sulcos e caneluras das experiências divididas, rastros por onde a vida - como a língua e as palavras - podem seguir escorrendo, podem voltar a escorrer.
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