pele, cicatrizes
não me lembro de ter decidido fotografar as árvores - embora tenha estabelecido que deveria fazer ao menos uma fotografia dos caminhos por dia. ainda assim, encontro muitas fotos de árvores no celular (sendo bem honesta, desde há muito que elas comparecem nos meus arquivos... acho que só não ganham das fotos do cachorro!). a foto aí de cima não faz jus à beleza dessa pessoa-árvore de pele avermelhada, pontuada pelos espaços em que a casca se descolou. duas fileiras delas protegem o caminho pelo qual chegamos mais rapidamente à rua principal e é comum vê-las carregadas de cockatoos ou corvos. mais embaixo, porém, são borboletas e aranhas que povoam o espaço. pelo porte, fico pensando que estão aqui há muitos anos, que viram a vida de muitas pessoas - humanas e não-humanes - acontecendo. ciclos e eventos. seiva e cascas.
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a Paisagem, o Lugar, são personagens centrais na narração da mudança climática - essa é uma das hipóteses comentadas na sessão de quinta passada. não apenas como testemunhas ou como personagens que ajudam a traduzir em palavras o deslocamento copernicano em nossa cronosofia envolvido no acontecimento do Antropoceno, mas como agentes que participam do desenrolar da trama.
em Cascas, Didi-Huberman dedica atenção às árvores e a elementos da paisagem como testemunhas das atrocidades ali ocorridas - atrocidades ocultadas, tão violentas que não deixaram senão testemunhas secundárias (os sobreviventes, não os afogados, para utilizar os termos de Primo Levi). ele começa seu ensaio com a fotografia de três lascas de árvore, que ele trouxe de sua visita, refletindo sobre como elas podem compor o arquivo da Shoah: não pelo que podem responder (como as rosas da canção, "as árvores não falam"), mas pelas interrogações que são capazes de introduzir. "O arquivo, penso, é uma memória em latência, uma memória que cochila, que, encoberta, poderá amanhã ser descoberta, re-aberta" (Samain, 2012, p.160). colhidas em um gesto de memória, guardadas em um gesto de transmissão, interrogadas em um gesto de desejo, a pele da árvore diz do testemunho impossível porém, por isso mesmo, imperativo - apesar de tudo, essa espécie de estrofe ao longo do trabalho de Didi-Huberman.
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"O que a casca me diz a respeito da
árvore. O que a árvore me diz a respeito do bosque. O que o bosque, o bosque de
bétulas, me diz a respeito de Birkenau. Essa imagem, naturalmente, como as
outras, é quase insignificante. Quase insignificante, uma coisa superficial:
película, sais argênteos que se sedimentam, pixels que se materializam. Sempre
tudo na superfície e por superfícies entremeadas. Superfícies técnicas para
testemunhar apenas a superfície das coisas. O que isso me diz a respeito do
fundo, o que isso atinge no fundo? [...] Podemos pensar que a superfície é o
que cai das coisas: que advém diretamente delas, o que se separa delas, delas
procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a
nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar
para recolher alguns pedaços. A casca não é menos verdadeira que o tronco. É
inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime. Em todo
caso, apresenta-se a nós. Aparece de aparição, e não apenas de aparência” (Didi-Huberman, 2013, p.132-131).
"Em francês, os etimologistas afirmam que a palavra écorce ["casca"] representa a extensão medieval do latim imperial scortea, que significa "casaco de pele". Como se para tornar evidente que uma imagem, se fizermos a experiência de pensá-la como uma casca, é ao mesmo tempo um casaco – um adorno, um véu – e uma pele, isto é, uma superfície de aparição dotada de vida, reagindo à dor e fadada à morte. O latim clássico produziu uma distinção sutil: não existe uma, mas duas cascas. Primeiro, a epiderme ou o córtex. É a parte da árvore imediatamente oferecida ao exterior, e é ela que é cortada, que é "descorticada" primeiro. A origem indo-europeia da palavra – que encontramos nos vocábulos sânscritos krtih e krttih – denota ao mesmo tempo a pele e a faca que a fere ou extirpa. Nesse sentido, a casca designa essa parte liminar do corpo suscetível de ser atingida, sacrificada, dissociada em primeiro lugar.
Ora,
precisamente para o ponto em que ela adere ao tronco – a derme, de certa maneira
–, os latinos inventaram uma segunda palavra, que estampa fielmente a outra
face da primeira: é a palavra liber, que designa a parte da casca ainda mais
propícia que o próprio córtex a servir de suporte para a escrita. Nada mais
natural, portanto, que ela tenha dado seu nome a coisas tão necessárias para
inscrever os farrapos de nossas memórias: coisas feitas de superfícies, de
lascas de celulose decupadas, extraídas das árvores, onde vêm reunir-se as
palavras e as imagens. Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos
livros. Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos
montados, fraseados em conjunto" (idem, p.133).
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entre essas pessoas-árvore que compõem o meu caminho e que aparecem para mim com suas tatuagens e cicatrizes; entre essa paisagem australiana em que a experiência de estar aqui, agora, de ser aqui e agora (atmosfera que sustenta meus pensamentos e sentimentos) vai se desenrolando; entre as memórias que esta paisagem evoca e memórias tantas, de violências de outras geografias e também as daqui - este lugar em que qualquer evento começa pela enunciação do fato de que estas terras são dos povos que aqui estavam antes da invasão, de que é preciso prestar respeitos aos ancestrais e à cultura, no presente-passado-futuro, e de que a soberania nunca foi cedida, mas continua encarcerando e matando pessoas Aborígenes sob custódia do Estado -, vou também constituindo esse pequeno arquivo e essas breves montagens. às vezes, como hoje, doloridas,. outras, pura festa de luz e vento:
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