pele, cicatrizes

(escrito neste fuso estranho, em que é ao mesmo tempo 31 de março e 1 de abril. 59 anos do golpe que inaugurou os 21 anos de ditadura civil-militar brasileira).

na quinta-feira, fui a uma atividade de um dos grupos de pesquisa ao qual estou ligada; o tema era a escrita de ficção e não-ficção no Antropoceno, sob a perspectiva de alguém que escreve ficção e não-ficção. foi bastante interessante a discussão que ela fez, em especial sobre o lugar que o Ambiente ou o Lugar passam a ocupar nessa escrita - ou seja, o ponto dela não era o Antropoceno como tema (embora certamente como algo que deveria se desdobrar em uma inflexão sobre a literatura), mas as consequências dessa experiência para a escrita. (fiquei pensando no texto do Guilherme Bianchi, "A vida política da paisagem". e, por coincidência, tinha lido as teses do Dipesh Chakrabarty sobre o Clima da História na noite anterior, também uma reflexão sobre os efeitos dessa experiência do Antropoceno para esse outro modo de nos narrarmos que é a História). teve até exercício de escrita no final - e, apesar de ter tentado começar em inglês, escrevi em português porque o exercício misturava paisagem e memória e eu jamais conseguiria falar da textura daquela experiência de outro modo. (é nas interações mais cotidianas, mais banais, que percebemos como habitamos muitas vezes só as áreas sociais de uma língua que não é a nossa - a varanda, a sala de estar... mas a intimidade da cozinha ou do quarto precisam de tempo para serem visitadas).

e então me dei conta de algo que eu já sei, mas só de vez em quando percebo assim, com a força do "dar-se conta": como escrevo mesmo "enfeitado", como o Tony Monti disse uma vez - uma porção de adjetivos, de tentativas de transmitir toda uma atmosfera em que quase há continuidade entre o dentro e o fora, entre o cenário e os movimentos do sentimento/pensamento. a escrita como uma espécie de exercício de presença: pés no chão, corpo no mundo. (era pra falar sobre pele e já estou eu quase falando de novo sobre raiz).

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esta postagem estava nos rascunhos já há algum tempo. tinha a ver tanto com algumas fotos que tirei do corpo de árvores encontradas nos caminhos quanto com a lembrança do ensaio do Georges Didi-Huberman (Cascas, sobre sua visita ao Museu e Memorial em Auschwitz-Birkenau, aqui citado a partir da versão publicada na Revista Serrote em 2013) e de um texto bonito do Etiene Samain, em diálogo com Cascas. tinha a ver ao mesmo tempo com a força das imagens e com sua superfície de inscrição - o papel, também ele ligado ao corpo das árvores. e tinha também a ver com a relação entre imagem e transmissão, em especial quando se trata de violências desmesuradas, impensáveis. a imagem como essa ferida aberta, convocando de novo e de novo nossa atenção (para além de nosso olhar).



 
próximo ao jardim de esculturas por que passo no caminho para a Biblioteca Nacional, está esta árvore. eu tinha entrado por ali para fotografar a escultura aí de baixo, de metal como as demais que compõem o jardim. ela fica bem próxima do caminho e me perturba um tanto. acho que por conta da combinação entre as asas e a fixidez ou do fato de parecer estar voltada para dentro do próprio jardim, o que torna suas asas de algum modo ainda mais inúteis.




fico pensando no gesto de marcar a árvore com esses grafismos. no contraponto entre a superfície inerte do metal e a superfície viva da árvore, desnudada pelos talhos. fico pensando nessa árvore tatuada, dando notícia de que alguém passou por ali e se deteve por algum tempo, decidindo deixar uma marca dissonante naquele jardim. a árvore tatuada fica bem em frente a esta escultura de asas abertas, o que me faz imaginar que há uma conexão entre seu efeito e a decisão por talhar uma mensagem.

a árvore tatuada des-naturaliza o jardim no qual estão instaladas as esculturas. chama nossa atenção para as árvores como indivíduos, para a beleza de suas peles e para a seiva que torna a cicatriz possível. é como se ela emprestasse algo de sua vitalidade para a estátua. como se a desafiasse cotidianamente a levantar voo e conhecer a paisagem que lhe emoldura.


não me lembro de ter decidido fotografar as árvores - embora tenha estabelecido que deveria fazer ao menos uma fotografia dos caminhos por dia. ainda assim, encontro muitas fotos de árvores no celular (sendo bem honesta, desde há muito que elas comparecem nos meus arquivos... acho que só não ganham das fotos do cachorro!). a foto aí de cima não faz jus à beleza dessa pessoa-árvore de pele avermelhada, pontuada pelos espaços em que a casca se descolou. duas fileiras delas protegem o caminho pelo qual chegamos mais rapidamente à rua principal e é comum vê-las carregadas de cockatoos ou corvos. mais embaixo, porém, são borboletas e aranhas que povoam o espaço. pelo porte, fico pensando que estão aqui há muitos anos, que viram a vida de muitas pessoas - humanas e não-humanes - acontecendo. ciclos e eventos. seiva e cascas.

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a Paisagem, o Lugar, são personagens centrais na narração da mudança climática - essa é uma das hipóteses comentadas na sessão de quinta passada. não apenas como testemunhas ou como personagens que ajudam a traduzir em palavras o deslocamento copernicano em nossa cronosofia envolvido no acontecimento do Antropoceno, mas como agentes que participam do desenrolar da trama.

Museu e Memorial Auschwitz-Birkenau (Auschwitz II - Birkenau), 28/1/20.

em Cascas, Didi-Huberman dedica atenção às árvores e a elementos da paisagem como testemunhas das atrocidades ali ocorridas - atrocidades ocultadas, tão violentas que não deixaram senão testemunhas secundárias (os sobreviventes, não os afogados, para utilizar os termos de Primo Levi). ele começa seu ensaio com a fotografia de três lascas de árvore,  que ele trouxe de sua visita, refletindo sobre como elas podem compor o arquivo da Shoah: não pelo que podem responder (como as rosas da canção, "as árvores não falam"), mas pelas interrogações que são capazes de introduzir. "O arquivo, penso, é uma memória em latência, uma memória que cochila, que, encoberta, poderá amanhã ser descoberta, re-aberta" (Samain, 2012, p.160). colhidas em um gesto de memória, guardadas em um gesto de transmissão, interrogadas em um gesto de desejo, a pele da árvore diz do testemunho impossível porém, por isso mesmo, imperativo - apesar de tudo, essa espécie de estrofe ao longo do trabalho de Didi-Huberman.

a despeito das aparências, as árvores, o bosque, não são testemunhas mudas. contrariando o desejo de destruição nazista (tão bem registrado por Yehuda Amichai, na tradução de Millôr Fernandes: "Depois de Auschwitz, uma nova teologia;/ Os judeus que morreram no Shoah/ Agora ficaram semelhantes a seu Deus/ Que não tem semelhança com um corpo e não tem corpo/ Eles não têm semelhança com um corpo e não tem corpo"), a paisagem acolhe os vestígios. os protege, de certa maneira, para que possam ser encontrados por quem se disponha a procurar: as fossas coletivas onde se concentram as flores; as cinzas dispersas pelo lago congelado; as coisas de casa e cozinha enterradas sob o que havia sido um dos blocos de armazenamento dos objetos expropriados. tudo isso faz do espaço do campo um imenso cemitério - ao menos agora, em que lembrar é possível (e imperativo).  mas a paisagem também participa do processo de elaboração, na medida em que no interior da terra o trabalho da vida sobre a morte continua a acontecer - Didi-Huberman fala de uma terra que de tempos em tempos "regurgita os vestígios das chacinas". cicatrizes da paisagem, feridas que se abrem ao trabalho de memória.

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Museu e Memorial Auschwitz-Birkenau, 28/1/2020.

"É difícil imaginar que tudo esteja perdido/ Uma vez que a energia das cinzas ainda está aqui/ E sopra de tempos em tempos/ através dos escombros" (Aimé Césaire).

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"O que a casca me diz a respeito da árvore. O que a árvore me diz a respeito do bosque. O que o bosque, o bosque de bétulas, me diz a respeito de Birkenau. Essa imagem, naturalmente, como as outras, é quase insignificante. Quase insignificante, uma coisa superficial: película, sais argênteos que se sedimentam, pixels que se materializam. Sempre tudo na superfície e por superfícies entremeadas. Superfícies técnicas para testemunhar apenas a superfície das coisas. O que isso me diz a respeito do fundo, o que isso atinge no fundo? [...] Podemos pensar que a superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas, o que se separa delas, delas procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar para recolher alguns pedaços. A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime. Em todo caso, apresenta-se a nós. Aparece de aparição, e não apenas de aparência” (Didi-Huberman, 2013, p.132-131).

"Em francês, os etimologistas afirmam que a palavra écorce ["casca"] representa a extensão medieval do latim imperial scortea, que significa "casaco de pele". Como se para tornar evidente que uma imagem, se fizermos a experiência de pensá-la como uma casca, é ao mesmo tempo um casaco – um adorno, um véu – e uma pele, isto é, uma superfície de aparição dotada de vida, reagindo à dor e fadada à morte. O latim clássico produziu uma distinção sutil: não existe uma, mas duas cascas. Primeiro, a epiderme ou o córtex. É a parte da árvore imediatamente oferecida ao exterior, e é ela que é cortada, que é "descorticada" primeiro. A origem indo-europeia da palavra – que encontramos nos vocábulos sânscritos krtih e krttih – denota ao mesmo tempo a pele e a faca que a fere ou extirpa. Nesse sentido, a casca designa essa parte liminar do corpo suscetível de ser atingida, sacrificada, dissociada em primeiro lugar.

Ora, precisamente para o ponto em que ela adere ao tronco – a derme, de certa maneira –, os latinos inventaram uma segunda palavra, que estampa fielmente a outra face da primeira: é a palavra liber, que designa a parte da casca ainda mais propícia que o próprio córtex a servir de suporte para a escrita. Nada mais natural, portanto, que ela tenha dado seu nome a coisas tão necessárias para inscrever os farrapos de nossas memórias: coisas feitas de superfícies, de lascas de celulose decupadas, extraídas das árvores, onde vêm reunir-se as palavras e as imagens. Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos livros. Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos montados, fraseados em conjunto" (idem, p.133).

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entre essas pessoas-árvore que compõem o meu caminho e que aparecem para mim com suas tatuagens e cicatrizes; entre essa paisagem australiana em que a experiência de estar aqui, agora, de ser aqui e agora (atmosfera que sustenta meus pensamentos e sentimentos) vai se desenrolando; entre as memórias que esta paisagem evoca e memórias tantas, de violências de outras geografias e também as daqui - este lugar em que qualquer evento começa pela enunciação do fato de que estas terras são dos povos que aqui estavam antes da invasão, de que é preciso prestar respeitos aos ancestrais e à cultura, no presente-passado-futuro, e de que a soberania nunca foi cedida, mas continua encarcerando e matando pessoas Aborígenes sob custódia do Estado -, vou também constituindo esse pequeno arquivo e essas breves montagens. às vezes, como hoje, doloridas,. outras, pura festa de luz e vento:






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