(re)começar?

Coisa mais anos 2000 ter blog, escrever em blog. Ao longo do tempo, foram tantos e me trouxeram tanta gente querida, de longe e de perto. Gente que passou, gente que foi ficando, ficando e ficou - mesmo às vezes tenho ido para outros lugares.

Quando estava tudo decidido que viríamos, eu e R., para Canberra, para estes seis meses de trabalho, cogitei retomar um blog. O Noturnos Imperfeitos possivelmente, já que era nele que eu mais escrevia coisas minhas, nas urgências de elaborar o mundo. Mas relendo textos antigos, vendo as postagens dos momentos finais, achei que não era ali. Aí fui de vez em quando mandando mensagens para amigas e amigos, às vezes por email, outras no whatsapp. E percebendo que, apesar de todo o meu gosto pelos podcasts de zap #soudessas #tenhonemvergonhamais, mesmo ali a vontade era de escrever. Como se fosse uma fúria missivista, ainda que sem tinta e papel.

Como se fosse bom inventar outros modos de estar perto, mesmo que (muito) longe. Como se o áudio instantâneo ou o vídeo fossem coisas sem sentido, que só atravessam uma experiência de estar em outro lugar de um jeito meio torto. A palavra escrita tem mais corpo? Pesa mais densa nessa travessia de oceanos e fusos?

Mesmo sabendo que blog é coisa antiga e sem muita coragem de inaugurar novos espaços, hoje voltando do trabalho decido (re)começar. O nome do blog é referência a um trecho do livro de Belén García Abia (que ganhei da Veronika, como tantas outras tantas delicadezas): escribo para dejar de ser yo. Frase foucaultiana pra caramba, que tenho tatuada de tanto que gosto de morar nela. Escrevo para deixar de ser eu. "Pra ser o que não penso; pra pensar o que não sou", disse o Foucault, embora não exatamente sobre a escrita.

Parece simples e poético. Mas aí, quando não estamos no nosso país, quando estamos mergulhados em outra língua, outra(s) cultura(s), "deixar de ser eu" nem sempre é esse horizonte de um trabalho sobre nossos limites. É mais concreto, mais literal. Aqui muita gente tem dificuldade de pronunciar o meu nome. Às vezes, quando é pra documento ou coisas afins, eu soletro. Mas em outras, quando não há nada em jogo, digo que chamo Ana - o que é rigorosamente verdade, mesmo que tenha uma vibe 007: meu nome é Ana, Fabi-Ana. E mesmo assim me surpreendo com a grafia, não antecipada. E embatuco pra entender: quem sou eu, no abrigo desse nome?




Lembro de um texto antigo, escrito em uma dessas propostas inventadas pela Veronika, em que eu dizia "mulher é um endereço impossível". "quando a gente se instala nesse lugar-mulher, já começa a enxergar a goteira, a parede mofada, a pintura e o chão estufados. mulher é lugar úmido. que logo impele à nova mudança. mulher-útero, de onde sempre se acaba expulso. mulher êxodo. [...] se um homem ou uma mulher quiserem me conquistar, não é nada difícil. basta olhar no olho e pronunciar meu nome, todas as sílabas, sem escandir. se o som me agradar, estarei tentada a vesti-lo – recobrindo assim o frio que por vezes invade essa habitação-mulher. um nome pronunciado com surpresa ou ternura ou desejo é uma lareira acesa, em torno da qual a noite gelada pode cair e ainda assim haverá aconchego. numa boca que nos pronuncia, existe possibilidade de abrigo.  por provisório que seja".  Um nome como possibilidade de reconhecimento, mesmo que a gente nem se imaginasse naquela entonação ou ritmo. Um nome que inaugura novas regiões de nós.

Fico pensando também nas minhas muitas amigas estrangeiradas, vivendo em países que não os seus países natais - sendo outras sob o abrigo de seus nomes, raramente ditos de maneira familiar. Penso no que sentem quando retornam e podem ser pronunciadas de modos que ecoam em territórios mais antigos de si mesmas; mas penso também em como a textura do nome pronunciado no lugar de destino vai transformando a gente, em especial quando dito por pessoas que passamos a amar e que passam a compor os interstícios de tempo e espaço nos quais nos sentimos em casa.

Antes de vir, disse pro marido: eu não volto. Tentei explicar: isso que se chama eu, não vai existir mais uma vez que eu tenha ido. Não só porque a gente se transforma com as experiências, mas porque o "eu" é sempre muito pouco circunscrito mesmo - equilíbrio delicado de bactérias, fungos, água, elementos químicos, tantas coisas que mudam radicalmente quando estamos em outras ecologias, comendo outras comidas, vivendo outra vida, imersos em outras existências (não só humanas).

Penso na boniteza da frase da Veena Das, em Texturas do Ordinário: "De forma semelhante à imaginação de que minha dor pode ser em outro corpo, Wittgenstein também nos provoca a imaginar que os limites de nossos corpos não são os limites de nossa subjetividade, pois nossa existência é sempre capaz de ser mais, ou outra, do que sua realização presente. Por toda nossa mundanidade, então, pode ser que nunca estejamos totalmente em casa em nenhum mundo particular". (Registrando o agradecimento à Taniele Rui pelo excerto!).

É isso, então. Um novo blog, aparentemente meio diário de viagem, meio viagem. Pra deixar de ser eu, pra habitar meu nome, pra ser mais ou outra em relação ao eu presente, em meio a essa mundanidade precária (que talvez nem tenha tanto a ver com estar aqui, a oceanos de distância do que me é familiar).

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