brotar, insistir, durar


Nell, "The woman tree" (fotografia na National Portrait Gallery, 2/4/2023) 

a escultura estava em uma sala separada, diferentemente iluminada, o que certamente contribuiu para seu impacto. pra quem vinha falando tanto de árvores e raízes, não foi pouco: a mistura entre corpo humano e o corpo arborescente, entre o corpo feminino e os galhos-quase-asas, além de tudo pontuada por esses fantasmas (é o nome que, na descrição da obra, a artista dá a essa cerâmica transparente e alaranjada que pende dos galhos) que escorrem como frutos jamais maduros, perenes. a figura estática, concentrada, avessa a estações ou a nosso trânsito em volta dela.

é um auto-retrato. e me fez lembrar do livro da Han Kang, A vegetariana. agora que paro para pensar nisso, há algumas árvores que encontro por aqui que sempre me evocam as páginas finais do livro, tão perturbadoras quanto fortes, ao menos do modo como eu as imagino.



(sem ter trazido meu exemplar comigo, busco informações sobre o livro e sou lembrada de que o terceiro ato se chama "Árvores flamejantes").

***

li esse livro pela primeira vez por indicação da mesma amiga que aparece aqui desde o início, post sim, outro também. era uma edição ruim, cheia de problemas de tradução e, sobretudo, de revisão e diagramação. mas nem isso ficou no caminho do fluxo da narrativa; depois, quando a Todavia fez uma nova tradução e uma edição linda, li outra vez, com o mesmo assombro - essa história de recusa e violência, de nãos que mal podem ser enunciados e, mesmo quando ditos, jamais podem ser ouvidos.

me lembrei de ter lido entrevistas com a autora, em que ela comentava a relação entre A vegetariana e um episódio de violência política na Coreia do Sul (ao qual ela voltaria em outro livro, Atos humanos, também editado pela Todavia, e que é uma das narrativas testemunhais mais potentes que já encontrei nesses anos todos de lidar com literatura de teor testemunhal). o sonho que desencadeia a decisão da personagem em A vegetariana, de parar de comer carne, estaria ligado assim a essa memória, difícil e impossível de soterrar, do massacre dos estudantes em Gwangju, em 1980. como se, frente ao esquecimento, a memória só pudesse se esgueirar pelas brechas do sono e do sonho, exigindo uma resposta ética a altura. (lembrando disso, agora penso também na relação entre o desejo de ser árvore, de florescer, e o lugar da floresta como testemunha em um dos capítulos mais duros de ler de Atos humanos, em que Han Kang imagina o processo do desaparecimento dos corpos resultantes do massacre. como diz o Didi-Huberman, "para saber, é preciso imaginar", transmutar os fatos em imagens, carregá-las, como frutos fantasmáticos. imaginação terrível, como terríveis são os fatos que precisam ser conhecidos).

em A vegetariana, no entanto, a violência é de outra ordem, mais privada e familiar. menos sangrenta, talvez, mas ainda assim devastadora. desde as primeiras linhas, enunciadas pelo marido de Yeonghye, a personagem central, a violência, que vai escalando ao longo de cada uma das três partes, está embebida na linguagem do gênero.

(por alguma razão, possivelmente porque eu os li mais ou menos na mesma época, o livro ficou misturado - do ponto de vista da atmosfera - a Sono, do Murakami. talvez porque também uma mulher, talvez porque também a madrugada, talvez porque também algo de tão central para a sobrevivência quanto o comer ou o dormir tenham sido o modo de manifestar o infamiliar. são livros tão diferentes, mas com ressonâncias entre si - ambos terminando em um misto de violência e fantástico).

A vegetariana conta, jamais em primeira pessoa, a história de Yeonghye, essa mulher "sem nada especial", provavelmente tão incompreendida por si mesma quanto por todos os que a cercam. que subitamente, a partir de um sonho monstruoso, passa a dizer não. e quanto mais ela diz não, mais os que estão em volta dela querem fazê-la desaparecer novamente no interior das normas ou de suas próprias questões. e mais eles voltam sua violência contra ela - como se ela, portadora dessa lembrança incômoda trazida do sonho, com o seu não revelasse a violência em que todo o normal se assenta.

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um dos últimos trabalhos que fiz na graduação, para a disciplina de "Indivíduo, razão e liberdade" (oferecida pela querida Maria Helena Oliva Augusto), consistia em colocar em relação o conto "O quarto 19", de Doris Lessing, e o livro "Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", da Clarice Lispector. era 2000 e eu tinha meus vinte e pouquíssimos anos. mesmo assim, de algum modo começava a entender as angústias daquela mulher narrada por Doris Lessing, que tem a vida que parece boa - a casa, os filhos, o marido - e sente o ar escassear, então cria para si um segredo, um espaço de silêncio e intimidade consigo mesma, para poder suportar a vida. com o passar do tempo, fui entendendo cada vez mais o seu gesto e os significados daquele quarto 19. o peso sufocante das normas e o trabalho de habitá-las sem perder o ar.

o conto não tem nada a ver com A vegetariana, é claro. Yeonghye não para de comer carne para reivindicar para si um espaço de individualidade, um lugar fora de seus papeis. sua recusa se conecta, em grande medida, ao que testemunha durante seu sonho - o que pode parecer (como parecerá) loucura. é uma violência meio difusa, sem história, mas que lhe deixa enojada e coloca algo em movimento: gestos para sustentar a recusa, apesar de tudo. desse limiar, não entre vida e morte, mas entre sonho e vigília, ela traz um "conhecimento envenenado", conforme a discussão feita pela Veena Das, um conhecimento que coloca tudo em questão e não pode ser simplesmente ignorado.

enquanto o corpo definha, porém, algo de outra natureza brota, de modo bastante frágil. talvez justamente aquilo que é vislumbrado por sua irmã e que interrompe a violência crescente sofrida por ela na instituição psiquiátrica.

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se o sonho fala da violência do massacre - essa que produz sangue e corpos em grande escala -, há outras violências em operação a cada ato. a violência embebida de parentesco e de gênero, que vai do tapa do pai ao não reconhecimento de sua recusa por parte da família, até a violência institucional, já no manicômio. em quais situações alguém tem direito a seu corpo; em quais situações uma mulher tem direito a seu corpo?

no Australian National Museum há duas galerias dedicadas à história e a arte dos povos Aborígenes, em especial aqueles que viviam no território em que Sydney foi construída. em uma delas, há mais sobre história - a história da violência e a história da resistência; a maior parte dos cartazes que compõe uma linha do tempo imensa tem textos narrados em primeira pessoa. nada de registros etnográficos ou relatos de viajantes para contextualizar o que se vê, o que se repete em relação aos objetos expostos: o "nada sobre nós sem nós" parece bem assentado na prática das instituições de memória por aqui. (vale registrar: antes de cada sala - assim como acontece em arquivos e bibliotecas que têm materiais ligados à história dos povos aborígenes, inclusive em seus sítios digitais - há um imenso aviso aos visitantes desses povos de que ali há registros de pessoas falecidas, o que pode ser perturbador para eles. um gesto mínimo contra o "direito imperial de tudo ver", como discutido pela Ariella Azoulay).


National Museum of Australia


aqui, por exemplo, temos uma história a respeito de Truganini, do povo Nuenonne (Tasmânia), registrada no diário de um sacerdote. em 1869, depois da morte de seu amigo, Truganini teria pedido ao padre para levá-la de barco para a parte mais funda do canal, pois ela desejava acabar com a própria vida - ela entendia que seu amigo era um dos últimos de seu povo e, desesperada não apenas pelo desaparecimento de sua comunidade mas com o fato de que todas as ossadas haviam sido levadas por pesquisadores ou instituições coloniais, ela preferia decidir como morrer e onde deixar seu corpo descansar, para que estivesse a salvo de uma violência de saber e poder que não lhe deixaria em paz nem mesmo após a morte.

visitei o Museu logo na sequência da decisão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo de retirar a homenagem a Amâncio Carvalho, que nomeava uma das salas do prédio no Largo São Francisco. trata-se do docente que mumificou, a modo de experimento, o corpo de Jacinta Maria de Santana (jamais doado à ciência) no início do século e que o manteve cativo por quase 30 anos. pouco mais de um ano se passou entre a reportagem publicada pela Agência Pública, trazendo as descobertas da historiadora Suzane Jardim, e a decisão da FD, o que nos traz um pouquinho de esperanças. mas ainda assim, a reiteração da violência em diferentes geografias me obrigou a sentar em meio ao museu e a secar as lágrimas antes de seguir.

em quais situações uma mulher tem direito a seu corpo?

***

hoje cedo lia Robin Coste Lewis (To the realization of perfect helplessness) e topei com este trecho:
"Olho para o mapa. Em uma pequena folha de papel, há dois quadros: o Polo Norte está no topo, o Polo Sul na parte debaixo. Toda água é branca. As terras dispersas são verdes. Além da fina impressão em preto, essas são as únicas cores. Em grandes letras negritadas, em cada um dos polos está a palavra INEXPLORADO.

Mais tarde irei pensar: Como sou como este mapa. O topo e a parte debaixo de mim - ambas - tão desconhecidas [...]" (p.174).

penso na solidão de Yeonghye, em como aquilo que repentinamente se revela a ela em sonho lhe deixa ainda mais sozinha: não há ninguém que se disponha a ouvir, de fato, o que lhe aconteceu, o que move suas decisões. ela simplesmente não tem a quem endereçar sua experiência. algo muito tênue a seu respeito só será efetivamente escutado quase ao final do livro.

lembrei de uma vez em que, conversando com a mãe de um amigo do meu filho, ela me contava que, naquele momento em que o crescimento deles parecia se dar aos saltos, ela estava se desconhecendo. é uma formulação que tem algo de estranho, embora por vezes a gente diga "mal me reconheço" a respeito de algo que fizemos ou deixamos de fazer, quando nos surpreendemos com nossas ações ou reações. mas se desconhecer, assim como verbo, é mais do que não se reconhecer: é desfazer o que sabemos de nós ou, ao contrário, descobrir regiões INEXPLORADAS, que mudam toda a geografia de nós mesmos.

e me dou conta de porquê, desde que comecei a escrever esta postagem, me lateja aquela frase da Veena Das, em Textures of Ordinary"eu busco alguém que pode receber as palavras que dão testemunho de mim mesma". alguém, talvez, que saiba colher delicadamente os fantasmas alaranjados e venenosos, sem se cortar ou se deixar envenenar.

***


agora já é pleno outono. muito mais do que a temperatura vai mudando: algumas árvores já perderam todas as folhas, outras vão mudando de cor como se lhe nascessem cãs, não somente brancas, mas também amarelas ou vermelhas; os dias vão ficando mais curtos; a luz é quase inteiramente outra; até os bichos parecem ter mudado de comportamento, em especial os pássaros... começa a fazer frio, o vento às vezes tem lâminas. quando a primavera chegar, eu já terei ido embora.

(digo "ido embora" e não "voltado" porque a Sylvia Molloy me ensinou, a partir do Leonardo Sciascia, que “Quien ha cometido el error de irse, no puede cometer el error de volver”).

antes, será preciso atravessar o outono e o inverno. sentar em silêncio com os fantasmas. persistir. elaborar os frutos.  preparar o reverdecer

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