irmã, despedida, florescer


a minha terça-feira teve a leitura de um texto do James E. Young, sobre as etapas da memorialização após acontecimentos traumáticos e violentos. ele contava de sua experiência como jurado no concurso que selecionou o projeto para o memorial no Marco Zero do 11 de setembro estadunidense. falava da importância de que memoriais e monumentos ligados a catástrofes memorializem não apenas o evento, mas a vida dos que foram atingidos, contribuindo para que a memória se enraíze na vida, para que a honra aos mortos encontre as necessidades dos vivos. em algum momento ele cita seu próprio terapeuta: "Em qualquer nova perda, nos lembramos de cada uma das outras perdas que tivemos" (2016, p.46). a minha terça-feira teve ainda o começo da leitura do livro de Nicole Loraux, sobre o luto das mães nas tragédias gregas - e toda a discussão sobre lamento, justiça e política a partir disso.

enquanto eu dormia, na terça-feira da minha família, minha irmã fazia sua passagem repentina para outro plano. soube imediatamente quando acordei, enquanto pra mim já era quarta e lá ainda era a mesma terça-feira infinita, momento-quando desse corte abrupto, desde o qual nossas vidas jamais vão ser as mesmas.

enquanto os meus recompunham forças para enfrentar o dia seguinte, do velório e da despedida, eu e r. nos movíamos lentamente pela densidade do luto. um dia de céu muito azul e de relativo calor, que se arrastou (ou pelo qual nos arrastamos). não tenho palavras para agradecer às amigas e aos amigos que me acolheram, me abraçaram de longe, acenderam velas para iluminar tanto a travessia da Mariana quanto a nossa por este primeiro véu. nessas horas, cada gesto, por mínimo, vale toda uma vida.

***

tendo resolvido comprar vela e flores para uma despedida improvisada no lago, entro na floricultura. primeiro vazia, já que era hora do almoço. penso na familiaridade deste cheiro, na minha memória marcadamente ligado aos velórios e visitas ao cemitério. uma senhora aparece e me pergunta do que preciso. diante da minha dificuldade em colocar em palavras, ela me olha nos olhos e me conforta, "você pode me dizer do que precisa". quando finalmente enuncio do que preciso, esse impossível gesto frente à enormidade da perda, ela me abraça, me dá lenços de papel. então se apresenta - tem o mesmo nome da minha sobrinha - e me explica sobre os rituais em seu país natal: as cinzas, a única flor de lótus lançada à água depois das orações. vai explicando e já escolhendo dois crisântemos rosa (os ritos, afinal, adaptados), tira o protetor que permite que elas se abram. enquanto pago, pergunta o nome da minha irmã, comenta que se parece com o dela. saímos, carregando essas flores-missivas, dando mais um passo na coreografia da despedida.

a amiga (aquela mesma), me escreve que esse momento-quando, do baque seco do susto, é "como um nascimento ao revés. no começo a surpresa, depois contamos os dias depois as semanas meses anos. como uma flor que se abre, como a eclosão de uma semente. o tempo. e a gente dentro".

descubro que as sementes da flor de lótus resistem por séculos sem perder seu impulso de vida. penso nessa sobrevivência, na das dores e a das alegrias. penso nas sementes da Mariana dentro da gente.


muito do amor e da delicadeza que minha irmã colocou no mundo se materializaram, eu soube hoje, em uma presença imensa em sua despedida. é bonito saber que quem a gente ama estava tão fortemente emaranhada em tantas vidas, que foi amada por tantas outras pessoas, que ontem choraram e cantaram em sua memória. penso nela como essa combinação entre uma força enorme e um modo aparentemente frágil de estar no mundo. a irmã que ficava muito doente quando pequena, mas de vontade quase inamovível.

por muito tempo ouvimos que a gente não se parece; mais recentemente, passamos a ouvir que éramos muito parecidas (só nossa voz que sempre foi consistentemente parecida, confundido todo mundo naquela longínqua era em que usávamos telefone para ligar uns para os outros). me peguei pensando ontem nas fotografias amareladas - tipo esta - que registram quando a conheci: sua chegada em casa, em um carrinho no meio da sala e eu ali, ao seu lado, como em tantas outras fotos que viriam depois. ou vai ver que a foto não era exatamente da volta do hospital, mas na minha memória aquele é o momento em que fomos apresentadas. eu transformada em irmã mais velha. no convívio entre irmãs, ciúmes, brigas, perrengues. o fato de que ela caia no sono toda vez que conversávamos antes de dormir ou que deixava as roupas amontoadas no pé da cama. mas também a preocupação, o cuidado – mesmo à distância, uma vez que já há mais de 25 anos que fui morar em outra cidade.

é com irmãos que talvez a gente aprenda um dos sentidos fundos do familiar, esteja ele ancorado ou não em sangue: aquele laço que persiste, que é retomado de onde parou a cada reencontro para seguir bordando a vida em comum. agora a Mariana não está mais ao alcance do telefone, nem mesmo à distância dos mais de dez mil quilômetros que me separam de casa. mas eu sei que esse bordado entre nós continua.



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